Falar a respeito da vida, não é assunto dos mais fáceis. Talvez eu tenha de render-me à Clarice Lispector que afirmava: “Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”. Oscar Wilde ajuda-nos do ponto de vista conceitual quando disse que “viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe”.
Santo Agostinho, importante teólogo e filósofo do século IV d.C., trabalhava com a hipótese de haver uma hierarquia na natureza. Uma pedra, dizia ele, apenas existe. Um animal e uma planta além de existirem, possuem vida. O Ser humano, além de existir e de viver, possui a singularidade do pensamento. O pensamento é o que nos fornece a consciência de que existimos e de que vivemos. Através do pensamento, temos ciência que não basta existir como uma pedra ou simplesmente viver como uma planta. O pensamento projeta-nos ao bem-viver, a uma vida com propósito, sentido e valor. E nisso consiste a nossa riqueza: o pensamento leva-nos além do que somos, além de nossas limitações. Leva-nos, segundo Agostinho, a Deus. Há um propósito no existir e no viver.
Para um alpinista, as montanhas não existem apenas para alcançar o topo, mas para curtir a adrenalina da conquista e, sobretudo, para aprender o valor da escalada. Da mesma forma que um chef confere sabor a um prato, também nós, cada qual a seu modo, somos convidados a temperar nossas existências, dando sabor à vida. A questão, no entanto, é que não há receitas e tampouco ingredientes predefinidos a azeitar o sabor que desejamos imprimir às nossas biografias.
Faz certo tempo que eu espalhei no chão de casa uma porção de peças de lego e fiquei observando a forma curiosa com que minha filha, na época, com pouco mais de um ano, olhava para cada pecinha colorida. De imediato, ela começou a tocá-las e prontamente percebeu que as minúsculas peças podiam ajustar-se mutuamente. Então eu comecei a encaixá-las, uma a uma, até formar uma figura que a deixou ainda mais surpresa. O contentamento expresso em seu sorriso aberto, dócil e ingênuo, demonstrava encantamento.
A vida, a cada novo amanhecer, revela um encantamento indescritível. Cercada de experiências e de ensinamentos, de alegrias e sofrimentos, esperanças e desânimos, amigos e momentos de reclusão, a vida é semelhante a um lego. Várias são as ocasiões que, ao deparar-se com fatos e acontecimentos corriqueiros do dia-a-dia, parece que estamos diante de uma peça que tende a se encaixar com outra. Fica a impressão de que os fatos e as experiências grafados em nossas histórias pessoais concorrem para arquitetar o sentido mais amplo e completo de nossas existências.
A minha filha tão rápida se encantou com a figura, também a desmontou e chateou-se por não conseguir restituir o sentido que eu, pai, lhe havia conferido. Ela chorou e veio ao meu encontro murmurando com suas palavrinhas embargadas de lágrimas: “Papai faz.... papai faz....”. Ela sabia que eu era capaz de restituir o sentido da imagem que havia tocado seus sentimentos e cativado seus olhinhos brilhantes.
Assim também parece acontecer na vida. Suplicamos, em oração, o auxílio do Pai na tentativa de compreender melhor os encaixes das peças da vida. Há peças traiçoeiras que parecem desconectadas e sem o menor sentido para nós. Muitas vezes ficamos atônitos sem saber qual peça nos falta. Momentos assim, rendemo-nos como crianças que suplicam e imploramos Àquele a quem acreditamos conhecer a configuração plena das peças a ajudar-nos a assimilar, ainda que parcialmente, a imagem desse grande quebra-cabeça, de infinitas peças, que é a vida. E oramos, sim, como crianças. “Deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, pois delas é o Reino dos Céus” (Mateus, 19,14).
Parece que na percepção dos encaixes das peças da vida está o pressuposto da fé. Elas tendem a realizar algo maior do que podemos ver ou compreender no momento. As peças minúsculas do dia-a-dia ao serem encaixadas com o auxílio das pessoas que cultivamos, ajuda-nos a potencializar a maturidade de uma fé que é construída e sustentada coletivamente.
E quando observamos que somos também as peças desse grande quebra-cabeça, compreendemos que todo o esforço que empreendemos a encaixar o sentido coletivo de cada peça (cada pessoa), estamos, na verdade, contribuindo para a realização do sentido e da plenitude de nós mesmos. É no desdobramento da temporalidade, no correr do tempo, que asseguramos sentido à vida e ao que somos. O que aflige em tudo isso é a finitude da vida. A esse respeito, Rubem Alves fixou a seguinte questão: “Resta quanto tempo?” Sua resposta: “Não sei. O relógio da vida não tem ponteiros. Só se ouve o tique-taque. Só posso dizer ‘Carpe Diem’ – colha o dia como um morango vermelho que cresce à beira do abismo. É o que tento fazer”.
Clodomiro José Bannwart Júnior é professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Londrina.
Revista Iátrico, do Conselho Regional de Medicina do Paraná (edição 39, de junho de 2021) http://www.crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/iatrico
Imagem reproduzida pela revista:
Gabrielle e Jean, do pintor francês Renoir (1841-1919). Obra está no Museu Orangerie, Paris (França).