Tio Vicente
A grande geada de 1975 havia enterrado a última réstia de esperança no cafeeiro. Como tantos outros trabalhadores na época, tio Vicente também lidava com a lavoura de café. Havia apreendido desde cedo a labuta da roça. A sua casa, aos pés da nascente do córrego Jaçanã, era permeada por algumas perobas e muitos eucaliptos. A sombra e o ar gélido debaixo daquelas frondosas árvores assemelhavam-se ao ar condicionado que hoje aprisionamos nos ambientes fechados. As correntes de ar de outrora permitiam compreender as alterações climáticas. Era possível saber se o tempo vindouro traria chuva ou estiagem.
Tio Vicente era instruído na sabedoria popular. Havia apreendido os sinais da natureza, entendia o seu ciclo. E não custou a perceber que o ciclo do café havia chegado ao fim. A lavoura era desilusão e a cidade salvação. Era necessário, então, aprender nos livros – segundo ele dizia. Precisava assimilar a sabedoria que só a escola era capaz de fornecer.
E tio Vicente foi à escola aprender as letras, o alfabeto, o significado de textos e palavras, enfim, o letramento exigido para ganhar a vida na cidade, seu destino. Ele desejava um futuro melhor para as suas filhas. Entre o sítio e a escola situada no pequeno distrito, tio Vicente percorria de bicicleta a estrada recém asfaltada. Não tinha mais o barro dos dias de chuva. Toda noite, depois do trabalho na roça, ele pedalava doze quilômetros. Uma noite, porém, tio Vicente não chegou à escola. Foi colhido por um carro que, no breu da noite traiçoeira, ceifou sua vida.
Tia Lourdes e as filhas deixaram a roça. Faltavam os braços fortes do tio Vicente para tocar a lavoura já decadente. Por coincidência, na cidade elas foram morar próximo a uma escola e foi lá que tia Lourdes conseguiu emprego. Sempre gentil com os alunos, sobretudo com os mais carentes, participou da educação de muitas crianças, inclusive das suas filhas. A escola era a extensão de sua casa. Sempre que eu e meu irmão íamos à casa da tia Lourdes, ela nos levava até a escola. Enquanto ela trabalhava nós nos juntávamos às primas e ficávamos por horas a fio brincando no parque, lendo na biblioteca ou escrevendo no quadro negro de uma sala de aula vazia.
A casa da tia Lourdes igualmente se assemelhava à escola. Na sala, sempre haviam livros emprestados na biblioteca, além de giz e um pequeno quadro negro. Sua casa ainda guarda o cheiro da escola, esse lugar mágico de aprendizado e de partilha do conhecimento. Um santuário que preserva a essência daquilo que nos faz humanos.
A tia Lourdes, hoje, guarda o peso dos anos e a memória do passado. Suas filhas, Angela e Lúcia, exercem atividades profissionais em instituições de ensino. Angela trabalha em uma escola para portadores de necessidades especiais. E Lúcia atua na mesma escola que sua mãe devotou o esforço de uma vida inteira. Tio Vicente, infelizmente, não completou a pretendida jornada nos estudos, mas deixou sua família albergada no lugar que ele sempre sonhou que ela estivesse: na escola.
Clodomiro José Bannwart Júnior