Prefácio do Livro Ética e Democracia Econômica
05/08/2020 - Clodomiro José Bannwart Júnior

PREFÁCIO DO LIVRO ÉTICA E DEMOCARIA ECONÔMICA

AUTOR: LUIZ MIGUEL LUZIO-DOS-SANTOS

Prefaciar a obra Ética e Democracia Econômica. Caminhos para a socialização da Economia, de Luís Miguel Luzio dos Santos, constitui motivo de alegria e, igualmente, de grande satisfação. Não há, porém, como se furtar da responsabilidade que o convite, por mais amigável que seja, impõe a quem recebe o desafio de tecer considerações a respeito da obra, que o leitor e a leitora, na sequência, serão agraciados tanto pelo conteúdo quanto pelo estilo da escrita.

O livro trata de um assunto nada fácil, que é o de equacionar ética, democracia e economia à luz do quadro empírico que fomenta as engrenagens da sociedade contemporânea. E nesse sentido, o autor teve o cuidado de resgatar as fontes filosóficas que edificaram o discurso normativo – ético e moral – com o propósito de examinar a viabilidade de uma democracia econômica comprometida com princípios e valores.

Na Antiguidade grega encontra-se o berço originário, ao menos para a tradição Ocidental, que tematizou a pauta do problemas enfrentados no presente livro. Na Apologia de Sócrates, por exemplo, Platão confere a seu mestre a seguinte afirmação: “Digo-vos que dos haveres não provém a virtude para os homens, mas da virtude provêm os haveres e todos os outros bens particulares e públicos”.[1] É clara a alusão de que a virtude (ética) deve preceder a dinâmica dos bens materiais, sejam eles privados ou públicos.

Da Grécia antiga aos dias atuais ocorreram muitas mudanças, que exigem o esforço de atualização dos pressupostos teóricos que pretendem certificar o quadro explicativo da presente conjuntura sócio-histórico. E este é um aspecto robustecido, ao longo do livro, por dados empíricos que cooperam para uma reflexão teórica vinculada à realidade. Reflexão destemida que colhe em diversas fontes teóricas aporte para um diagnóstico da realidade, sem se furtar de apontar prognósticos factíveis.

Valendo-se da companhia de importantes teóricos, o livro não deixa de enfrentar a possibilidade de a ética e a moral frutificarem em solo democrático, mesmo ciente da dinâmica sistêmica do mercado e do sistema financeiro que, amiúde, diminui o peso normativo das sociedades complexas e funcionalmente diferenciadas da contemporaneidade. A esse respeito, vale importante consideração do filósofo Jürgen Habermas ao ponderar que “em sociedades complexas, até os esforços mais sérios de auto-organização política fracassam perante obstáculos resultantes do sentido próprio do mercado e do poder administrativo. Antigamente, a democracia era imposta contra o despotismo encarnado no rei, em partes da nobreza e do alto clero. Atualmente, a autoridade política se despersonalizou; a democratização não se confronta mais com os obstáculos genuinamente políticos, mas com imperativos sistêmicos de um sistema administrativo e econômico diferenciado”[2]. Desnuda-se que a democracia não é um acessório exclusivo a azeitar o liame entre Estado e sociedade, mas deve igualmente se ocupar de gerir condições mais altivas a lidar com os componentes funcionais e sistêmicos do capitalismo, incluindo aí, sem pestanejar, o modus operandi da economia e do sistema financeiro.

A ética, nessa quadra, fica alijada em razão dos imperativos sistêmico-funcionais, os quais impõem à sociedade preceitos pragmáticos destituídos da possibilidade de tematização dos fins almejados coletivamente. O caráter pragmático da ação faz a dinâmica sistêmica girar em falso, porém, com a aparecia de valores éticos. Essa miopia normativa, tão bem retratada no livro, mostra que o tecido social deixa de ser fruto de relações normativas oriundas da ética, da moral e da política, e passa a ser justificado tão somente com base nas relações de produção. O emblemático para o quadro de uma teoria social, que empreende esforços de entender a sociedade hoje, é a constatação de que os mecanismos de integração social passam a ser de natureza não normativa.

Isso reflete, de certo modo, uma ordem social em que a estrutura normativa é, pari passu, substituída por mecanismos sistêmicos constituídos quase que exclusivamente por um processo de valorização do capital. Esse modo objetivador de ver e entender a sociedade faz restar apenas um processo de acumulação repetitivo, sem dar conta de assegurar qualquer viabilidade emancipatória, visto que a dinâmica do mercado e do sistema financeiro se assenta em uma base destituída de estabilizadores normativos provenientes do lastro social.

Nesse sentido, a democracia deve incorporar um diálogo mais profícuo com as esferas sistêmicas da sociedade, sob pena de ser por elas sucumbida. Não há como falar em Estado democrático de direito desconsiderando os aspectos funcionais e sistêmicos da sociedade, sobretudo o papel exercido pela economia e as suas consequências acentuadas na sociedade e no próprio Estado. Esse é um importante aspecto da pauta contemporânea que o presente livro, além de chamar a atenção, partilha de estimulantes reflexões.

Considerando que a ética exige responsabilidade individual em relação a escolhas de ações do ponto de vista privado e, igualmente, responsabilidade social quanto às ações que impactam a sociedade, nada desabona que o mercado, na medida em que opera na sociedade, delibera e persegue fins, tenha atinente grau de responsabilidade tanto no âmbito negocial privado quanto social. Se a responsabilidade é inerente ao discurso ético, impossível desvincular a responsabilidade privada e social do mercado, sobretudo de suas consequências produzidas. Ao menos sob o quadrante do Estado Democrático de Direito é impossível abandonar a reinvindicação do discurso ético. Despedir-se da ética é, em boa medida, repudiar as instituições que balizam a legitimidade da ordem social. É negar a democracia e o próprio direito. É fazer valer exceções e não a regra que moldura o Estado constitucional. Com bem diz Habermas, “a filosofia não subtrai ninguém da sua responsabilidade prática”.[3] Nem mesmo o mercado.

 É fundamental que o mercado, e mais recentemente o próprio sistema financeiro, sejam guindados a participar das estruturas democráticas do Estado de direito. Fora desse quadrante resta a barbárie, tanto social como negocial. Projetar uma reflexão capaz de colocar o mercado, sob o ponto de vista normativo, no horizonte do Estado Democrático de Direito, é tarefa árdua que o autor se impõe, conduzindo o seu leitor a permanentes questionamentos ao longo do livro. O empreendimento visa a demonstrar que a ética e a moral – valores e princípios – servem como dispositivos de proteção às formas de vida socioculturais vulneráveis que, perpassadas pela ingerência de uma lógica sistêmica e instrumental, são ameaçadas em suas três vertentes de sustentabilidade: social, econômica e ambiental.

O livro que o leitor e a leitora, ora dispõe, é um alento teórico no âmbito das discussões na atual quadra da história. A densidade da reflexão e o cuidado teórico ao explorar os temas que conjugam a ética, a democracia e a economia, demonstram que Luís Miguel Luzio dos Santos soube qualificar, a contento, o sentido pleno da pesquisa acadêmica aliado ao didatismo que lhe é peculiar no exercício no magistério superior, como professor na Universidade Estadual de Londrina.

Espero ter reunido nas poucas páginas que me couberam redigir neste “prefácio”, o destaque merecido da obra, construída com inovadora abordagem prática e sólida fundamentação teórica, e que certamente engrandecerá a literatura da área, possibilitando apliar o estofo da pesquisa, leitura e exploração por parte da comunidade acadêmica e público em geral interessados na temática.

Clodomiro José Bannwart Júnior é professor do Progama de Mestrado em Direito Negocial e coordenador do Curso de Especialização em Filosofia Política e Jurídica na Universidade Estadual de Londrina.

 

 

 

 


[1] PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução de Enrico Corvisieri Mirtes Coscodai. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 57.

[2] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 256.

[3] HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 31.