Na venda do meu pai
A geada negra de 1975 sentenciou de morte o ouro verde que movia a economia e com ele o modo rural de tocar a vida. Na casa do nono, o café quente que esquentava o peito, já não aquecia os negócios e tampouco despertava o interesse de cultivá-lo. As lavouras haviam sido transformadas em cemitérios que, a despeito de qualquer otimismo, sepultara para sempre a esperança de uma geração lavrada no cafeeiro.
Meu pai não cultivava a lavoura. Tirava o sustento da família de uma venda de secos e molhados e da velha máquina de beneficiamento de arroz, herança do avô João Nicolau. Fui criado nesse contexto, em um comércio à beira de uma estrada poeirenta nos dias de sol, e de muita lama em dias de chuva.
Premida pelo êxodo rural, a vendinha ficou durante décadas no meio desse caminho: entre a decadência da vida rural e a vida urbana com sua prometeica industrialização. E foi nesse contexto que eu vi a transição política no Brasil, a derrocada da ditadura e o ressurgimento da democracia.
A venda era um festivo ponto de encontro, sobretudo aos sábados, quando era servido mocotó e dobradinha. Os que eram da cidade faziam parada ali para reviver a nostalgia dos tempos passados. Os da roça vinham até lá comprar os mantimentos necessários, incluindo a cachacinha. É nessa encruzilhada que dois mundos se encontravam: o rural e o urbano; o caipira e o letrado. Sempre tive fascínio pela sabedoria dos dois. E quando o país voltou a falar de política, PMDB e PDS também se encontraram lá. Vez ou outra a temperatura subia além do normal, e o pai me pedia para abrir algumas cervejas geladas. Era cortesia da casa. E a conversa logo voltava ao tom normal. Do lado de dentro do balcão havia uma cadeira e eu ficava em pé sobre ela para ganhar estatura e atenção daquela gente. Acompanhava atentamente as discussões políticas.
O pai, para o contexto da época, era tido como homem estudado, e sempre angariava respeito quando tomava a palavra. Gostava muito de ler e, em casa, nunca faltaram livros e revistas que semanalmente eram comprados na cidade. A sua maior conquista, na época, foi ter feito a assinatura da Folha de Londrina. O problema, no entanto, era o jornal chegar até lá. A saída foi conversar com o distribuidor do jornal. Ficou acertado que seria colocado no Km 5 da rodovia, à margem esquerda, uma lata para que o jornal fosse ali depositado. E assim, por anos, a Folha chegava antes mesmo de o galo cantar.
A minha primeira tarefa do dia era buscar o jornal. A “lata de notícias”, como era conhecida, trazia todos os dias informações para a troca de ideias que afloravam entre uma cerveja e outra. O resultado dos debates políticos que aconteciam na venda foi a candidatura à vereador, no pleito de 1982, de dois moradores do entorno. Um saiu pela situação e o outro pela oposição. Na véspera da eleição só faltou sair tiroteio na porta da venda.
Acompanhando o debate político no país, ainda me sinto como se estive ao lado do meu pai, observando as discussões e os debates acalorados. Recordo-me de sua posição altiva, clamando pela vivência do espírito democrático. “É preciso que tenhamos mais diálogo, mais respeito e menos violência”. Conselho precioso, sobretudo, para esta eleição.
Clodomiro José Bannwart Júnior
(Artigo publicado na Folha de Londrina, Folha Rural, em 28 de setembro de 2018)