Cidadania deficitária
Clodomiro José Bannwart Júnior
Nossa biografia de nação tem um legado de não pertencimento. Os antepassados, de várias nacionalidades, vieram, trabalharam, constituíram famílias, ajudaram na construção do país, mas externam comportamentos a exigir um retorno à pátria de ascendência. São vidas não analisadas no divã da brasilidade que lutam e driblam a burocracia em busca de uma identidade suplementar à porta do consulado do país de origem. Aspiram, em sua maioria, tirar a “cidadania” e deixar uma oportunidade para filhos e netos. Contardo Calligaris, na recente introdução de sua obra “Hello, Brasil!”, diz que “o colono não quer voltar, mas acha que seu sonho não é mais aqui, então ele sonha que os filhos voltem para a Europa ou com a continuação da viagem”.
A depreciação do país e de suas instituições, uma constante homilia de boa parte dos brasileiros, talvez vai além do sentimento de colono, assimilado por muitos, diante de uma hierarquia que assenta em nível superior a figura do colonizador, esteio do velho coronel – tão bem caraterizado por Victor Nunes Leal em Coronelismo, enxada e voto – e de seu dileto filho, o “doutor”. Os que ocupam o andar de cima são os mesmos que outrora aplaudiram o Estado Novo e marcharam pela supressão do regime representativo. Hoje, os filhos seus, maturados nessa pátria gentil, conclamam atos antidemocráticos com o propósito de empurrar a história de volta ao passado.
Um sistema político que girou em falso boa parte de sua história, sem ocupar-se de integrar o andar de baixo, e tomado constantemente de assalto por arroubos autoritários, continua incapaz de firmar a maturidade cidadã de seus membros.
A cidadania implica na inclusão de todos em uma comunidade política e exige o reconhecimento simétrico de direitos, sobretudo, os que facultam o exercício livre dos interesses políticos. Cidadania se realiza junto às regras jurídicas, as quais exigem um nível de sociabilidade regrada pelo auto-respeito. Cidadania requer igualdade, não dualidade.
A percepção de que ainda persistem grupos que colonizam e falseiam as regras do jogo político, deixando parcela da população à margem, como se fossem colonos abandonados à própria sorte, não coopera para alicerçar a solidez democrática almejada. A leitura psicanalítica de Calligaris mostra que “a justificativa dessa dualidade é simples: eu quero um país respeitável, mas, se o país me desconsidera como cidadão, por que eu o respeitaria como país? Ou seja, por que eu não sonegaria imposto, se o país me sonega cidadania?”
A ausência de cidadania é sintoma de que tanto a sociedade quanto o Estado não se firmaram integralmente, deixando vácuos ocupados por lideranças que prometem improvisar arbitrariamente o que o poder público não conseguiu realizar institucionalmente. É nesse contexto conflagrado que nascem mandatários que desejam ser mais temidos do que respeitados e fazem da ameaça uma afronta permanente à legalidade.
O sentimento de muitos – que se percebem vítimas de injustiças – é temperado com raiva e ressentimento, sendo explorado por incendiários que apostam na destruição da fauna política e jurídica do país. Para isso recuperam moinhos de ventos já sepultados e lustram o velho comunismo, pau para toda obra, com ameaças astrológicas repaginadas.
Acrescente, ainda, os novos inquisidores, que carregam a Bíblia numa mão e a arma na outra, convictos de que acenderão novamente a fogueira santa, ao mesmo tempo que lutam para colocar um bezerro de ouro no altar do Supremo Tribunal Federal. Suas marchas desacreditam as balizas do Estado de direito e diminuem o respeito aos preceitos democráticos.
No limiar do ocaso, forma-se uma tempestade perfeita com força de aniquilar a cidadania ativa, a única, segundo Hannah Arendt, a garantir o direito a ter direitos.
Clodomiro José Bannwart Júnior é Professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Londrina.
(Artigo publicado na Folha de Londrina, edição de 24 e 25 de abril de 2021)