Cegueira distópica
Clodomiro José Bannwart Júnior
As pessoas sempre têm um arsenal de conhecimento acumulado a albergar posições ideológicas, visões de mundo e convicções pessoais. Na era das mídias digitais, porém, o cruzamento de informações tem sido intensificado exponencialmente, tornando o conhecimento alvo de constantes ataques franqueados por ideias falseadas, descontextualizadas e mentirosas.
O conceito “jaula de ferro”, cunhado pelo sociólogo Max Weber, foi transmutado em “gaiola de ferro”. Tornamo-nos reféns de um aparelhinho levado no bolso, que guia e direciona as pessoas algoritmicamente. Quem nunca foi tragado para diálogos destituídos de fundamentos? Lá pelas tantas, o interlocutor, não satisfeito, saca o celular do bolso e começa a mostrar memes, crente de que a associação de frases soltas e de imagens vagas confirme suas ideias.
Há um submundo de desinformação correndo nas redes sociais, que é abastecida em escala industrial e atende a interesses políticos, além de inundar a opinião pública com tumulto e caos, insumos que movem a política de forma anômala. É um campo dominado por milícias digitais, focadas em produzir posições radicais e binárias.
O interlocutor, depois de cansar os dedos na tela do celular, e não satisfeito com os dados sorvidos, dispara para seus contatos o entulho armazenado no seu aparelho e que, por sinal, já repousa em sua mente. Para arrematar, adverte que é importante manter-se bem informado.
Não há fundamento que justifique uma sociabilidade profícua decorrente dessa nova fórmula de interação. Há um arrasto ditado pela engenharia da tecnologia e dos números a conduzir as pessoas, cada vez mais, aos extremos. E os gregos foram sábios ao ensinar que posições extremadas tendem a produzir tragédias, asseverando que o caminho da prudência é o da mediania e da moderação. Hoje, sobra-nos tecnologia, falta-nos ética.
Quando Descartes escreveu suas Meditações Metafísicas, em 1641, afirmou que diante de algo que apresentasse o menor grau de dúvida, estaria o homem autorizado a decretá-lo como falso. Tratava-se da dúvida metódica como caminho para depurar inverdades, incertezas e falsidades e conduzir o conhecimento a uma base segura, portadora de certeza e de objetividade. Hoje, infelizmente, a regra cartesiana foi solapada por uma nova: “à menor dúvida, nenhuma dúvida mais”.
José Saramago, em sua obra Ensaio sobre a cegueira, afirma a importância de as pessoas assumirem “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. Ainda que muitos digam que essa cegueira não é contagiosa, estamos, ao que parece, há algum tempo mergulhados numa pandemia, cujo vírus deturpa nossa visão com o excesso de informações adulteradas. Uma cegueira distópica. É urgente recobrar a saúde e recuperar a lucidez.
Clodomiro José Bannwart Júnior é professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Londrina
(Artigo publicado no Jornal Ecos de Sant’Ana, edição de 17 e 18/04/21)