Experimente dar uma bola a um grupo de crianças no jardim da infância, na faixa etária de até três anos, e peça a elas que joguem futebol. Provavelmente farão de tudo com a bola, menos jogar futebol. A elas faltarão coordenação motora para empreender a partida e desconhecimento das regras que sustentam a disputa. Não formarão times e cada qual, individualmente, fará suas peripécias aleatórias com a bola, e possivelmente brigarão entre si, o que demandará a presença de um adulto para apartá-las. As crianças, nesse caso, apenas brincam, sem conseguir fazer da bola instrumento para um jogo de fato.
Na mesma toada do futebol, imagine a possibilidade de ir ao estádio ou assistir pela TV a uma partida de futebol, sabendo antecipadamente que os times não respeitarão as regras do jogo e, para piorar, o juiz inventará e aplicará novas regras durante a disputa em benefício de um dos times. Veja que o jogo só faz sentido porque há regras que determinam o procedimento de como a querela futebolística deverá ser jogada para sagrar um time vitorioso e outro perdedor. Destruir as regras do jogo aniquilará o jogo em si.
As regras não engessam a partida, mas permitem uma disputa equilibrada e asseguram a liberdade para que os jogadores (individualmente) e os times (coletivamente) organizem suas estratégias, façam a marcação dos adversários, controlem os passes de bola, driblem, enfim, demonstrem a beleza do esporte. Um pênalti marcado pelo juiz não caracteriza uma crise no jogo, apenas repara alguma falta cometida para a continuidade equilibrada da disputa.
O jogo depende de regras e de procedimentos claros, cujo conhecimento seja acessível a todos. Imagine um locutor narrando o jogo sem conhecer as regras do futebol ou um torcedor fanático que gesticula, grita, xinga e vibra, sem compreender o que ocorre no gramado.
Os exemplos colhidos no futebol valem para a política. Como a sociedade é constituída de valores díspares, de ideologias distintas e de interesses diversos, é necessário estabelecer regras que permitam assegurar a sociabilidade, isto é, a convivência da pluralidade no mesmo espaço social. Do contrário, reinaria a barbárie. As regras da política foram construídas ao longo de séculos, retirando o homem de um estado de brutalidade, regido pela força e pela violência, para colocá-lo em um estado minimamente civilizado, dirigido pelo império da lei que vincula a todos, inclusive os que governam o povo. A política, nesse sentido, é uma conquista civilizacional da humanidade.
Ao subsidiar as regras para o legítimo jogo de interesses, de valores e de ideologias na sociedade, a política incorpora a democracia e o direito, formulando o Estado democrático de direito. O Estado é democrático ao reconhecer e proteger os direitos e deveres dos cidadãos, e é de direito ao firmar que as regras do jogo político são preservadas e aplicadas, a exemplo do juiz no futebol, por uma instância neutra que é o Judiciário.
Os dilemas políticos, a discussão que impera em torno deles, a disputa partidária, tudo isso é saudável em uma democracia e só faz confirmar a vitalidade e a maturidade da sociedade. Para alcançar esse patamar civilizado de discussão é preciso maturidade e conhecimento das regras que subsidiam a operacionalidade da política. Democracia exige aprendizado. Ser civilizado impõe formação. Cidadania requer escola.
Como afirma Winnicott, psicanalista inglês, “a sociedade democrática é uma sociedade madura, isto é, possui uma qualidade que vem de par com a qualidade de maturidade individual que caracteriza seus membros sadios”.
Qualquer discurso no espaço público que afronta a tolerância e o respeito à alteridade, que preconiza a destruição de adversários políticos, que faz apologia à violência, à ditadura e à tortura, devem ser veementemente rechaçados. Não podemos nos esquecer da conhecida afirmação do filósofo Karl Popper: "A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. Devemo-nos, então, reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante”.
Fazer uso dos meios providos pela democracia para negá-la é um contrassenso infantilizado, próprio da imaturidade. Aí está o limite da política a separar a civilidade da barbárie.
A política não se resume a um jardim da infância com crianças imaturas e brincadeiras arbitrárias destituídas de regras. A política requer pessoas maduras capazes de compreender, antes de qualquer posicionamento ideológico, as regras que foram construídas com suor e sangue, e que ofertam a possibilidade um convívio civilizacional.
(Artigo publicado no Jornal O Londrinense, edição de 08 de fevereiro de 2022)