À sombra do Flamboyant
09/05/2020 - Clodomiro Bannwart


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Lá no sítio, quando criança, eu costumava brincar debaixo de um flamboyant frondoso, plantado por meu avô em tempos pretéritos. Era um lugar lindo. Descia uma pequena corrente d’água que contornava algumas pedras revestidas de musgos e seguia calma os sulcos construídos por capricho da natureza.
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Todas as tardes, da janela da cozinha, minha mãe assistia a mim e ao meu irmão que brincávamos sob a sombra do flamboyant. Para superar os fios d’água que corriam irregulares, construíamos pequenas pontes para dar passagem aos nossos carrinhos de brinquedo. Vaquinhas de plástico ajudavam a formar a paisagem da fazenda imaginária do meu irmão. Casinhas de papelão eram erguidas, e estradas expandiam-se em várias direções para correr veloz os caminhõezinhos. Cercas de palitos de sorvetes eram fincadas geometricamente para separar as propriedades e evitar brigas entre eu e meu irmão.
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Esse lugar da minha infância sempre esteve guardado com vivacidade em minha memória. Todas as vezes que puxo o novelo da lembrança, recordo-me das duas lindas fazendas, minha e do meu irmão, abarcadas pela generosa sombra do flamboyant e delineadas pelo riacho límpido que corria sereno entremeio a pedras e musgos. E da janela, a mãe, sempre sorridente, a abençoar a prosperidade dos seus filhos.
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Dia desses, recluso por força da pandemia, minha mãe recuperou uma foto, da qual eu não tinha conhecimento. Na imagem, já antiga e amarelada, estávamos eu e meu irmão brincando debaixo do flamboyant entremeio ao aguaceiro que corria de um cano da cozinha da casa e espalhava-se no terreiro. Minha decepção foi sentida na alma. Aquilo, na verdade, não passava de um brejo. E a foto não deixava margem à dúvida.
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A beleza nem sempre está nas coisas, mas no sentido que a elas atribuímos. Buda dizia que “somos aquilo que pensamos”. O que está dentro de nós tem a força de conferir valor, significação e sentido à realidade.
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À sombra do flamboyant permanece a recordação dos fazendeiros que ofereceram sentido à infância pobre de duas crianças.
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Clodomiro José Bannwart Júnior é Doutor em Filosofia.